quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Conservadorismos, manipulação e medo.


Sempre que aparece no horizonte uma mínima possibilidade de mudança no status quo e, ainda que essa modificação se apresente como benéfica para grupos de pessoas tradicionalmente preteridas de seus direitos mais básicos, surgem sempre, como contraponto, os argumentos conservadores. Os defensores da não-mudança aparecem, então, dispostos a provar, por meio dos mecanismos retóricos que lhe são peculiares, que as inovações propostas são inúteis, equivocadas ou notoriamente danosas à sociedade.
Parece-me tarefa das mais difíceis definir, em linhas precisas e universais, o que vem a ser o pensamento conservador ou quais, exatamente, seriam suas premissas. Se, no entanto, eu tivesse que me arriscar a esboçar um aspecto constituinte desse tipo de mentalidade, diria que o conservadorismo tende a mesclar um permanente mal estar com a situação presente com um receio gigantesco de qualquer mudança com algum traço de ineditismo. Por isso, creio, o pensamento conservador ora aponta para o imobilismo, para a permanência das coisas em seu atual estado, ora para o regresso, com a adoção de fórmulas conhecidas que, alterando a situação política e social atual, pretendem apenas recuperar ou reavivar no presente, um modelo ou referência pretérita.
Os conservadores, penso, são pessoas essencialmente desencantadas com a humanidade e descrentes, em maior ou menor medida, do protagonismo histórico da espécie humana nas transformações culturais ou sociais. Esse desencanto os leva a crer que toda e qualquer mudança pensada por e para as pessoas são farsas premeditadas para servir aos apetites egoístas de uns poucos ou, quando muito, tendem sempre a se desnaturar, gerando uma nova situação sempre pior do que anterior. Talvez devido a essa descrença, a esse melancólico desencanto, são os conservadores presas fáceis da atemporalidade e da segurança dos dogmas religiosos e de teorias econômicas, históricas e sociológicas que, despindo a humanidade de qualquer autonomia sobre o seu destino e suas vontades, elegem, como força motriz, das mudanças alguns entes abstratos como, por exemplo, uma divindade ou a “mão invisível” do mercado.
Muitas vezes, a crítica conservadora, quando bem embasada, pode ajudar a prevenir a sociedade dos possíveis danos oriundos de mudanças que, por serem ou parecerem urgentes, acabaram sendo elaboradas sem que se sopesassem os possíveis danos colaterais de sua implementação. Na verdade, o conservadorismo aguçado, elaborado e crítico funciona como um contrapeso que, se não é sempre bem visto por aqueles para quem as mudanças urgem, ajudam, pelo menos, a enriquecer e lapidar propostas que podem alterar beneficamente a sociedade. O medo dos conservadores, em sua verve detalhista e dialógica, pode sim, por tudo isso, contribuir bastante para a solidificação e esclarecimento de mudanças necessárias. Nesse sentido, dar ouvidos a certas posições conservadoras é parte do diálogo democrático e não se está a dizer, em nenhum momento, que opiniões de espectro conservador devam ser sempre descartadas.
Há, porém, uma gama de situações e de contextos sociais, jurídicos e culturais em que os conservadorismos, muitas vezes de forma irrefletida, atuam como álibis para omissões estatais criminosas ou como endosso para situações de fato notoriamente injustas. Diante de questões muitas vezes discutidas a exaustão e que pedem mudanças urgentes na cultura, nas leis e nas práticas sociais, certos conservadorismos, usando de catastrofismos, teorias conspiratórias e falácias consequencialistas absurdas, acabam agindo como avalistas para a perpetuação de violências, injustiças e indignidades. São momentos em que os aspectos mais saudáveis do medo ou a desconfiança relativa ao novo, dão lugar à sua face irracional, patológica e nociva, beirando o delírio, a negação da realidade e dando vazão a uma discussão que, extrapolando o âmbito da racionalidade política, resvala para a guerra mais suja  contra os direitos alheios.
Embora possa parecer que eu estou exagerando, pode-se perceber, na contramão das discussões mais atuais, das estatísticas e mesmo da realidade sensível, um afã negacionista, de cores nitidamente conservadoras (que têm por intuito impedir mudanças em diferentes campos) sobre situações gravíssimas e que merecem pronto remédio legislativo, político e pedagógico.
Nega-se a existência de racismo no Brasil para impedir a implementação das políticas de cotas; nega-se que nossa cultura tradicionalmente machista acabou relegando às mulheres a um status de inferioridade cultural e de sujeição à violência alarmante; nega-se a existência de preconceito contra os homossexuais brasileiros muitas vezes na mesma frase em que se prescreve a eles ou elas limites para suas condutas e afetos para impedir a criminalização da discriminação por orientação sexual; nega-se o componente social da violência e da criminalidade ao mesmo tempo em que se clama por penas mais duras, mais penitenciárias e um estado mais policialesco. Nega-se a tudo, desenfreadamente, apenas para que as coisas permaneçam como estão, para que as mudanças, por mais necessárias e urgentes que sejam, simplesmente não venham.
Ao lado das negações, criam-se também teorias, invertem-se os pólos, transformam-se as minorias de direitos em algozes da liberdade.  Acusam as feministas de odiarem e de desejarem escravizar os homens; os negros de quererem para si privilégios e não direitos; os homossexuais de integrarem uma misteriosa maçonaria com o intuito de ceifar a religião; as minorias, de forma geral de tolherem a liberdade de expressão de comediantes que regurgitam preconceitos abjetos.
Em todas essas atitudes, percebe-se que o medo irracional do novo fala mais alto do que a disposição ao diálogo, ao entendimento dos anseios e necessidades do outro que é visto, aqui, como uma ameaça. Nem sempre o medo, aqui, deve ser entendido como um sentimento ingênuo, porém. Muitos desses argumentos, repetidos muitas vezes por pessoas que genuinamente temem as mudanças, são formulados por pessoas que têm interesses mais escusos e personalistas na conservação do atual estado de coisas.
Devemos nos lembrar que o medo é um campo fértil para a manipulação, sendo fartos na história mundial os exemplos em que o direcionamento dos receios da população foram direcionados contra um “inimigo” inventado por uma retórica catastrófica com o prosaico intuito de angariar ou manter nas mãos de alguns poucos, poderio político e econômico. É  a forma como operam as ditaduras, as potências imperialistas, os líderes carismáticos e, certamente, é algo a se ter em mente quando alguém lhe apresenta, como argumento para a manutenção de um certo status quo, uma desculpa fácil ou um inimigo demasiadamente ardiloso que empreende mudanças com o escopo único de lhe prejudicar.
Dito isso, é necessário que se faça aos conservadores um apelo importante: nunca deixem que o seu medo, por vezes justificado, de mudanças, sirva como obstáculo a um diálogo aberto ou, o que é pior, como um fator de desumanização daqueles que clamam pelo novo.
** Pedro Munhoz (@pedromunhoz5) advogado e historiador.

Nenhum comentário:

Postar um comentário