Um de meus passatempos preferidos é refletir sobre letras de músicas. É muito interessante observar como nossas interpretações de algumas canções podem mudar ao longo do tempo, ou como podemos levar anos para descobrir o que significava tal música ou um de seus trechos.
Inauguro essa sessão com Piercing, de Zeca Baleiro, um dos melhores compositores da música brasileira (ao lado de Renato Russo, Raul Seixas, Cazuza e Humberto Gressinger, para ficar naqueles que eu conheço bem).
logo Deus inventou o freio,
um dia, um feio inventou a moda,
e toda roda amou o feio"
(Antes de tudo, um jogo de palavras, explorando dois significados de ‘roda’. Traz a ideia de que Deus tem de colocar limites no ser humano. Quanto ao feio inventar a moda e assim ser amado por todos, entendo como uma crítica a esse mundo das celebridades – permeado por modelos – e das aparências, em que alguém feio só é valorizado/amado se fizer algo de útil a quem o cerca).
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor 4X
(Confesso que este refrão sempre me deixava intrigado. Que raios era essa alusão ao piercing? Eu, do alto da minha insensibilidade, levava para o lado literal, imaginava uma cena bem dolorida, alguém arrancando seu piercing. Não teve jeito, reconheci minha incapacidade de interpretá-lo e recorri ao oráculo dos tempos modernos, o Google. E lá encontrei a explicação do próprio Zeca Baleiro: “nada contra o piercing, mas é que ele traz a idéia de sacrifício, e hoje o piercing é uma coisa banal, todo mundo tem”. Depois li interpretações de outras pessoas, e a que me convenceu foi a que sustenta que o trecho é uma crítica à superficialidade (representada pelo piercing) com que as coisas são tratadas hoje em dia. Então o trecho significaria “saia do caminho com a sua superficialidade que eu, que tenho emoções/idéias profundas, quero passar).
Eu existo porque penso
tenso por isso existo
(Algo como “não preciso entrar num estado alterado de consciência para colocar a cabeça para funcionar. Menção também ao estresse em que as pessoas vivem (tenso), reescrevendo a máxima de Descartes “penso, logo existo”).
São sete as chagas de cristo
São muitos os meus pecados
Satanás condecorado
na tv tem um programa
Nunca mais a velha chama
Nunca mais o céu do lado
Disneylândia eldorado
Vamos nós dançar na lama
(O sacrifício de Jesus teria sido em vão, pois nós, humanos, pecamos demais, e o coitado teve apenas sete chagas).
Bye bye adeus Gene Kelly
Como santo me revele
como sinto como passo
Carne viva atrás da pele
aqui vive-se à míngua
Não tenho papas na língua
Não trago padres na alma (não sou moralista)
Minha pátria é minha íngua (não sou patriota)
Me conheço como a palma
da platéia calorosa
Eu vi o calo na rosa
eu vi a ferida aberta
Eu tenho a palavra certa
pra doutor não reclamar
Mas a minha mente boquiaberta
Precisa mesmo deserta
Aprender, aprender a soletrar
(sugestões? Pensei em algumas coisas, mas nada muito consistente)
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor 4X
Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
jogue fora na sarjeta
(De novo a crítica à superficialidade. Sentimentos e emoções estão tão banalizados que dá para comprar como se fosse um produto qualquer e descartar a hora que bem entender).
Compre um lote do futuro
cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
cobre a sua carência
(Um trocadilho com a palavra ‘carência’, que é tanto aquele período em que não podemos ficar doentes – mesmo tendo acabado de contratar um plano de saúde – quanto aquela emoção mais comum nos solitários. Repete-se a idéia da banalização dos sentimentos, pois seria possível contratar um plano de seguro contra o sentimento carência).
Eu perdi o paraíso
mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
propriedade privada
(Uma crítica às religiões, pois elas te prometem o Paraíso, desde que você não ouse questionar certas coisas. O eu-lírico questionou (“ganhei inteligência”) e perdeu o Paraíso. Mas não foi o fim do mundo. Olha quanta coisa ele ganhou ao se libertar: demência, felicidade e propriedade privada. Perguntarão: e ter demência é bom? Sim. Não se está falando daquela patologia, e sim de um modo leve de ver e levar a vida. Sabe aquela pessoa que é tão, mas tão engraçadona que você acha que ela é meio demente? rs. É como diz aquele texto que circula pela internet: bom é ter problema na cabeça, sorriso no rosto e coração leve. Sobre a felicidade não é necessário falar muito, pois creio que essa seja a meta de todo mundo na vida. Por fim, a menção à propriedade privada remete àquela idéia do Max Weber exposta em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, em que o autor sustenta que as nações protestantes evoluíram economicamente mais rápido que as católicas porque sua doutrina não condenava o lucro).
Não se prive não se prove
Dont't tell me peace and love
Tome logo um engov
pra curar sua ressaca
Da modernidade essa armadilha
Matilha de cães raivosos e assustados
(Aqui ele nomina a modernidade, que seria a responsável pela superficialidade de tudo o que critica ao longo da música)
O presente não devolve o troco do passado (pare de remoer o que passou, siga em frente)
Sofrimento não é amargura (você pode até sofrer reveses na vida e sofrer, mas isso não te autoriza a ser uma pessoa amargurada, que só reclama e assim afasta todos à sua volta).
Tristeza não é pecado (podemos ficar tristes, não temos a obrigação de estar felizes o dia todo, todo o dia).
Lugar de ser feliz não é supermercado (crítica ao consumismo exacerbado nos dias de hoje)
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor 4X
O inferno é escuro
não tem água encanada
Não tem porta não tem muro
Não tem porteiro na entrada
(Até depois da morte levamos a ideia terrena do que seria conforto e bem-estar. É o paradoxo que observo em muitas pessoas: dizem que ter uma religião é SUPERIMPORTANTE, mas só investem na matéria).
E o céu será divino
confortável condomínio
Com anjos cantando hosanas
nas alturas nas alturas
Onde tudo é nobre
e tudo tem nome
Onde os cães só latem
Pra enxotar a fome
Todo mundo quer quer
Quer subir na vida
Se subir ladeira espere a descida (não se deslumbre com o sucesso/fama/poder/ dinheiro: um dia acaba).
Se na hora "h"o elevador parar
No vigésimo quinto andar
der aquele enguiço
Sempre vai haver uma escada de serviço (Não se desespere, sempre há uma saída. Para tudo).
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor 4X
Todo mundo sabe tudo todo mundo fala
Mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la (Sempre falo dos sabichões movidos a Google que existem. Hoje em dia “todo mundo sabe tudo”, hoje em dia qualquer um tem opiniões – “todo mundo fala” – é proibido não ter opinião formada sobre um assunto, demonstrar sua ignorância é inadmissível, basta ser “esperto” e consultar o oráculo e posar de sabichão [já trabalhei com um cara que pensava assim. Não preciso dizer que ele não era muito inteligente]. Mas ter conhecimento de verdade, estudar para valer, ‘sentar a bunda na cadeira’, enfim, “estudar a língua do mudo” ninguém quer, é coisa de nerd, “eu quero mais é beijar na boca e ser feliz”, Cláudia Leite, filósofa contemporânea).
Quem não quer suar camisa não carrega mala
Revólver que ninguém usa não dispara bala (isso me lembra a história do cara que chegou em casa e pegou a mulher transando com outro no sofá da sala e, no dia seguinte, vendeu o sofá).
Casa grande faz fuxico quem leva fama é a senzala (a corda sempre arrebenta do lado mais fraco).
Pra chegar na minha cama tem que passar pela sala (não transo com qualquer um (a); antes de irmos para a cama aprontar peripécias, temos de sentar e bater um papo aqui na sala, nos conhecermos um pouco melhor)
Quem não sabe dá bandeira; quem sabe que sabia, cala (o popular “em boca fechada não entra mosca”. Ou, como diria o Legião, “fala demais por não ter nada a dizer”. Geralmente, pessoas que falam demais falam de coisas desinteressantes na maior parte do tempo).
Liga aí porta-bandeira não é mestre-sala
E não se fala mais nisso
Mas nisso não se fala
E não se fala mais nisso
Mas nisso não se fala
E não se fala mais nisso
Mas nisso não se fala
E não se fala mais nisso
Mas nisso não se fala
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor 4X
Composição incrível. Mas a dúvida persiste quanto ao "aprender a soletrar".
ResponderExcluirSem dúvidas interessante sua análise. Sempre gostei de outra música dele, Dezembros, mas confesso que nunca entendi o significado da letra, aliás, o Zeca tem disse, fica muito nas entrelinhas as letras deles, mas queria saber o significado da letra Dezembros, se souber fico grato, grande abraço.
ResponderExcluirIvo, não conheço essa música. Vou pesquisar e, se chegar a alguma conclusão, te aviso. Abraço.
ResponderExcluirFala Kenny, se olhar a letra e entender o que ela quer passar e dizer o que vc entendeu, ficarei muito agradecido. Acho a melodia da música linda, mas a letra eu até hoje não consigo interpretar. Grande abraço.
ResponderExcluirOlá Ivo, não sei se já foi respondido, mas segue a minha interpretação:
ExcluirDepois de muito tempo ouvindo e analisando essa música, cheguei a conclusão de que se trata de um preso numa prisão, dá para perceber bem no início "Nunca mais a natureza da manhã (Nunca mais o amanhecer pleno do mundo lá fora livre de grades) E a beleza no artifício da cidade (A beleza nos contornos da cidade, hoje inacessíveis) Num edifício sem janelas (cadeia) Desenhei os olhos dela - Entre vestígios de bala (Os próprios vestígios de uma vida de crime passada e\ou de seus colegas carcerários e\ou policiais) - E a luz da televisão (televisão de cadeia que ficam sempre ligadas num canto superior fora da cela). E o "Ela" se não for uma paixão antiga, pode ser a "Esperança": a esperança de sair dali, a última que morre, mas que nunca se concretiza.