Diário do Farol é a autobiografia de
um psicopata. Logo, uma história perturbadora.
Quando digo psicopata, não imagine um
serial killer. Ainda que o protagonista cometa alguns assassinatos, ele não se
encaixa neste perfil. Matadores em série geralmente têm como alvo um tipo
específico – e aí há todo tipo de paranóia: os que detestam ruivos (O
Escaravelho do Diabo, da série Vaga-Lume), os que têm trauma de noivas (As
Noivas de Copacabana, minissérie da globo com o Miguel Falabella), os que matam
suas vítimas de acordo com os sete pecados capitais (Seven, filme dirigido pelo
David Fincher) etc etc etc.
O protagonista dessa história não é assim.
Não é nenhum louco (se é que podemos chamar assim os assassinos seriais) com
aversão a um típico determinado. Seus crimes sempre têm um objetivo específico,
e são motivados por vingança.
A história começa com o narrador
falando sobre sua infância. Ele nos conta sobre seu pai, que é um monstro que
matou a esposa para se casar com a cunhada. Essa me parece a grande sacada do
João Ubaldo Ribeiro: mostrar que seu protagonista sofreu demais nas mãos do pai
tirano para assim gerar no leitor simpatia e compreensão. É inevitável pensar:
com um pai desses, ninguém se tornaria uma boa pessoa.
É esse aspecto que me fez, ao longo de
quase todo a história, suportar sem muitas dificuldades as maldades que o
narrador ia cometendo. Quase todas elas estavam ligadas ao seu propósito maior:
se vingar de seu pai. E por isso você vai perdoando o que ele faz.
Outro detalhe que choca é que o
protagonista é padre. Seja qual for sua (des)crença, a figura de um padre
evoca, ao menos num primeiro momento, bondade. E este personagem usa e abusa da
confiança que a batina desperta nas pessoas, inclusive se aproveitando das
confissões dos fiéis para lhes chantagear futuramente.
O narrador é esquizofrênico, embora em
nenhum momento a história tente pintá-lo como alguém que não goza plenamente
das faculdades mentais. Muito pelo contrário. Ele faz questão de ressaltar que
não existe essa conversa de Bem e Mal – em muitas passagens, com ironia, ele
destaca as conseqüências boas de maldades que cometeu, mostrando que tudo pode
ser visto por diversos ângulos.
Digo que ele é esquizofrênico porque a
única pessoa em que ele confia durante toda sua vida (sua primeira regra é: não
confie em ninguém) é sua falecida mãe. Ele conversa com ela quase toda noite,
ela é seu porto seguro e sua incentivadora. Minha conclusão de que ele é
esquizofrênico não deriva de minha descrença em espíritos, e sim da
coincidência de que a mãe sempre diz o que ele quer/precisa ouvir,
característica da esquizofrenia. Para deixar mais claro: os diálogos que ele tem
com a mãe se assemelham muito às conversas que temos com nós mesmos.
Para não me alongar mais, digo que a
história gira basicamente em torno de dois objetivos do protagonista: se vingar
do pai e de Maria Helena, uma mulher que o desprezou. Mas ele não era padre?
Sim. E mesmo assim faz muito sexo. A começar pelo convento onde estudou.
É clichê usar a expressão “um soco no
estômago”, mas foi o que eu senti no final. Como eu disse, no início da
história vamos perdoando tudo o que ele faz porque concordamos que aquele
crápula de pai merece sofrer a vingança. Mas seu outro alvo, Maria Helena, não.
Ela é boa pessoa. Por isso, fiquei muito mal ao final da história, quando ele
se vinga dela.
Aliás, a parte final do livro é a
melhor. O narrador fala sobre o período da ditadura militar no Brasil e de como
a usou para alcançar seus fins. Tal passagem serve para refrescar a memória a
respeito da barbárie que foi cometida em nosso país naquele tempo. Todo mundo
sabe desse período negro da história, mas quando você lê descrições minuciosas
de torturas, a indignação vem à tona com uma força incrível. E não custa
lembrar que a tortura era absolutamente legal, era política de Estado.
Passo agora a transcrever alguns
trechos do livro, começando por um que fala sobre isso:
“Para um padre como eu, talvez fosse
difícil reconhecer, a princípio, que o uso da tortura era necessário, mas
haveria eu de convir: torturados foram os mártires da Igreja, torturados foram
os mártires da democracia e das liberdades públicas, torturados foram os que
resistiram à opressão soviética. Militares e sacerdotes tinham mais em comum do
que se pensava, pois ambos colocavam acima de tudo sua fidelidade a princípios”
(pág 251)
“Desejo estragar, ou macular
definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la. Minha
esperança é que ela possa mirrar ou extinguir-se inteiramente, para que você
veja o mundo como ele é, ou enlouqueça, ou morra, ou ambas as coisas, pois
quase todos, insisto, sobrevivem apenas porque crêem que não são sozinhos. São,
sim. Você é sozinho e permanentemente ameaçado, e somente um voluntarismo
animalesco lhe faz ver o mundo de maneira diversa”. (pág 12).
Ele repete algumas vezes, ao longo da
narrativa, a ideia de que a vida não tem sentido:
“... uma espécie de conscientização da
loucura, entendida esta como a internalização da ausência de sentido da vida, o
que dana e salva ao mesmo tempo e é o único caminho não enganoso. A vida não
tem sentido” (pág 17)
“Lê-se ficção para fortalecer a noção
estúpida de que há sentido, lógica, causa e efeito lineares e outros adereços
que integrariam a vida. Lê-se ficção... por insegurança, porque o absurdo da
vida é insuportável para a vastidão dos desvalidos que povoa a Terra” (pág 10)
“Quinta lição: todo mundo mente, num
grau ou noutro, e é tolice acreditar que uma pessoa não está mentindo, quando,
como já disse alguém, você tem certeza de que, no lugar dela, tampouco contaria
a verdade” (pág 62).
“Se eu estivesse lá, teria feito um
inimigo desnecessário – pois que alguns são necessários, o que aprendi com a
vida, já que nos obrigam a observar cautelas que não observaríamos se não
tivéssemos inimigos, potenciais ou não” (pág 134)
“Existia algo no mundo que tornasse
compulsório ou indispensável ter uma vocação? Positivamente não, trata-se de um
mero preconceito. Suspeito que há bem mais gente do que eu, sob este aspecto,
do que as pessoas costumam confessar” (pág 187)
“Todos, sem exceção dos oligofrênicos
e de outra forma incapacitados, têm o potencial para ser felizes. Mas normas e
valores arbitrários e absurdos acabam tomando por inteiro a sua mente, como uma
erva-de-passarinho abafa e mata a árvore que infesta, e ele não pode ser feliz,
não pode ser feliz violentando a si mesmo, como se impõe a todos” (pág 200)
“A vida é vitoriosa não quando se tem
o que se costuma ver como bênçãos, ou seja, beleza, dinheiro, honrarias e assim
por diante. Essas coisas podem perfeitamente conviver e até entrar em simbiose
com a mais completa infelicidade. Elas não representam uma vitória, por mais que
seus detentores e os que erroneamente os invejam queiram pensar assim. A vida é
vitoriosa quando se satisfaz o que de fato há em cada um de nós, aquilo que de
fato ansiamos e quase nunca nos permitem, nem nos permitimos, reconhecer.
Preencher essa satisfação é uma tarefa cumulativa, em que a preparação é, por
assim dizer, permanente” (pág 202/203)
“Não se pode ter cerimônia com o
texto, tem-se que escrever o que vem à cabeça, eis que quem trabalha em excesso
as palavras é um patente embusteiro narcisista. Não há o que complicar, é só
escrever o que vem à mente, sem censura interna, outra estupidez inútil, assim
como ler nas entrelinhas, pretensão arrogante de oligofrênicos com que
subdotados se divertem e se acreditam espertos” (pág 236)
“As cidades pequenas, onde o mais
comum são os cachaceiros e as beatas mexeriqueiras, constituem uma espécie de
síntese da Humanidade. É nelas que aparecemos, sem as desculpas ou evasivas que
o rebuliço das cidades grandes desculpa ou justifica, para dar a parecer que os
indivíduos são diferentes. Não são diferentes e a vida paradisíaca das cidades
pequenas, que tantos imbecis exaltam, não passa de um exercício de falsa
simplicidade, em que a maldade e a má vontade inerentes à condição humana se
disfarçam até mesmo em solidariedade. Não é solidariedade o que se manifesta
quando, por exemplo, se acodem os necessitados, é vaidade, vaidade exercida até
mesmo perante o Deus que inventaram e ao qual dizem que são fiéis, pois que,
apesar de professarem a onisciência desse Deus, acreditam que ele só vê o que
eles querem” (pág 239)
“Só faltava Maria Helena – e como eu
ia viver depois, que sentido teria a existência? Viver para quê? Para ler uns
poucos livros, ouvir umas poucas músicas, dedicar-me ao sacerdócio, viajar? A
última dessas opções nunca me seduziu e tampouco consigo entender a mania que
muita gente tem por viagens. Por mim, não preciso conhecer nada, não quero
lugar algum, tudo já está nos livros e a realidade é sempre inferior à
imaginação, como já constatei em todas as ocasiões em que estive em lugares que
me pareciam atraentes. Melhor vê-los através do pensamento, através de tudo o
que já se escreveu, fotografou ou pintou sobre eles” (págs 285/286).