sábado, 1 de setembro de 2012

João Ubaldo Ribeiro - Diário do Farol



Diário do Farol é a autobiografia de um psicopata. Logo, uma história perturbadora.

Quando digo psicopata, não imagine um serial killer. Ainda que o protagonista cometa alguns assassinatos, ele não se encaixa neste perfil. Matadores em série geralmente têm como alvo um tipo específico – e aí há todo tipo de paranóia: os que detestam ruivos (O Escaravelho do Diabo, da série Vaga-Lume), os que têm trauma de noivas (As Noivas de Copacabana, minissérie da globo com o Miguel Falabella), os que matam suas vítimas de acordo com os sete pecados capitais (Seven, filme dirigido pelo David Fincher) etc etc etc.

O protagonista dessa história não é assim. Não é nenhum louco (se é que podemos chamar assim os assassinos seriais) com aversão a um típico determinado. Seus crimes sempre têm um objetivo específico, e são motivados por vingança.

A história começa com o narrador falando sobre sua infância. Ele nos conta sobre seu pai, que é um monstro que matou a esposa para se casar com a cunhada. Essa me parece a grande sacada do João Ubaldo Ribeiro: mostrar que seu protagonista sofreu demais nas mãos do pai tirano para assim gerar no leitor simpatia e compreensão. É inevitável pensar: com um pai desses, ninguém se tornaria uma boa pessoa.

É esse aspecto que me fez, ao longo de quase todo a história, suportar sem muitas dificuldades as maldades que o narrador ia cometendo. Quase todas elas estavam ligadas ao seu propósito maior: se vingar de seu pai. E por isso você vai perdoando o que ele faz.

Outro detalhe que choca é que o protagonista é padre. Seja qual for sua (des)crença, a figura de um padre evoca, ao menos num primeiro momento, bondade. E este personagem usa e abusa da confiança que a batina desperta nas pessoas, inclusive se aproveitando das confissões dos fiéis para lhes chantagear futuramente.

O narrador é esquizofrênico, embora em nenhum momento a história tente pintá-lo como alguém que não goza plenamente das faculdades mentais. Muito pelo contrário. Ele faz questão de ressaltar que não existe essa conversa de Bem e Mal – em muitas passagens, com ironia, ele destaca as conseqüências boas de maldades que cometeu, mostrando que tudo pode ser visto por diversos ângulos.

Digo que ele é esquizofrênico porque a única pessoa em que ele confia durante toda sua vida (sua primeira regra é: não confie em ninguém) é sua falecida mãe. Ele conversa com ela quase toda noite, ela é seu porto seguro e sua incentivadora. Minha conclusão de que ele é esquizofrênico não deriva de minha descrença em espíritos, e sim da coincidência de que a mãe sempre diz o que ele quer/precisa ouvir, característica da esquizofrenia. Para deixar mais claro: os diálogos que ele tem com a mãe se assemelham muito às conversas que temos com nós mesmos.

Para não me alongar mais, digo que a história gira basicamente em torno de dois objetivos do protagonista: se vingar do pai e de Maria Helena, uma mulher que o desprezou. Mas ele não era padre? Sim. E mesmo assim faz muito sexo. A começar pelo convento onde estudou.

É clichê usar a expressão “um soco no estômago”, mas foi o que eu senti no final. Como eu disse, no início da história vamos perdoando tudo o que ele faz porque concordamos que aquele crápula de pai merece sofrer a vingança. Mas seu outro alvo, Maria Helena, não. Ela é boa pessoa. Por isso, fiquei muito mal ao final da história, quando ele se vinga dela.

Aliás, a parte final do livro é a melhor. O narrador fala sobre o período da ditadura militar no Brasil e de como a usou para alcançar seus fins. Tal passagem serve para refrescar a memória a respeito da barbárie que foi cometida em nosso país naquele tempo. Todo mundo sabe desse período negro da história, mas quando você lê descrições minuciosas de torturas, a indignação vem à tona com uma força incrível. E não custa lembrar que a tortura era absolutamente legal, era política de Estado.

Passo agora a transcrever alguns trechos do livro, começando por um que fala sobre isso:

“Para um padre como eu, talvez fosse difícil reconhecer, a princípio, que o uso da tortura era necessário, mas haveria eu de convir: torturados foram os mártires da Igreja, torturados foram os mártires da democracia e das liberdades públicas, torturados foram os que resistiram à opressão soviética. Militares e sacerdotes tinham mais em comum do que se pensava, pois ambos colocavam acima de tudo sua fidelidade a princípios” (pág 251)

“Desejo estragar, ou macular definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la. Minha esperança é que ela possa mirrar ou extinguir-se inteiramente, para que você veja o mundo como ele é, ou enlouqueça, ou morra, ou ambas as coisas, pois quase todos, insisto, sobrevivem apenas porque crêem que não são sozinhos. São, sim. Você é sozinho e permanentemente ameaçado, e somente um voluntarismo animalesco lhe faz ver o mundo de maneira diversa”. (pág 12).

Ele repete algumas vezes, ao longo da narrativa, a ideia de que a vida não tem sentido:

“... uma espécie de conscientização da loucura, entendida esta como a internalização da ausência de sentido da vida, o que dana e salva ao mesmo tempo e é o único caminho não enganoso. A vida não tem sentido” (pág 17)

“Lê-se ficção para fortalecer a noção estúpida de que há sentido, lógica, causa e efeito lineares e outros adereços que integrariam a vida. Lê-se ficção... por insegurança, porque o absurdo da vida é insuportável para a vastidão dos desvalidos que povoa a Terra” (pág 10)

“Quinta lição: todo mundo mente, num grau ou noutro, e é tolice acreditar que uma pessoa não está mentindo, quando, como já disse alguém, você tem certeza de que, no lugar dela, tampouco contaria a verdade” (pág 62).

“Se eu estivesse lá, teria feito um inimigo desnecessário – pois que alguns são necessários, o que aprendi com a vida, já que nos obrigam a observar cautelas que não observaríamos se não tivéssemos inimigos, potenciais ou não” (pág 134)

“Existia algo no mundo que tornasse compulsório ou indispensável ter uma vocação? Positivamente não, trata-se de um mero preconceito. Suspeito que há bem mais gente do que eu, sob este aspecto, do que as pessoas costumam confessar” (pág 187)

“Todos, sem exceção dos oligofrênicos e de outra forma incapacitados, têm o potencial para ser felizes. Mas normas e valores arbitrários e absurdos acabam tomando por inteiro a sua mente, como uma erva-de-passarinho abafa e mata a árvore que infesta, e ele não pode ser feliz, não pode ser feliz violentando a si mesmo, como se impõe a todos” (pág 200)

“A vida é vitoriosa não quando se tem o que se costuma ver como bênçãos, ou seja, beleza, dinheiro, honrarias e assim por diante. Essas coisas podem perfeitamente conviver e até entrar em simbiose com a mais completa infelicidade. Elas não representam uma vitória, por mais que seus detentores e os que erroneamente os invejam queiram pensar assim. A vida é vitoriosa quando se satisfaz o que de fato há em cada um de nós, aquilo que de fato ansiamos e quase nunca nos permitem, nem nos permitimos, reconhecer. Preencher essa satisfação é uma tarefa cumulativa, em que a preparação é, por assim dizer, permanente” (pág 202/203)

“Não se pode ter cerimônia com o texto, tem-se que escrever o que vem à cabeça, eis que quem trabalha em excesso as palavras é um patente embusteiro narcisista. Não há o que complicar, é só escrever o que vem à mente, sem censura interna, outra estupidez inútil, assim como ler nas entrelinhas, pretensão arrogante de oligofrênicos com que subdotados se divertem e se acreditam espertos” (pág 236)

“As cidades pequenas, onde o mais comum são os cachaceiros e as beatas mexeriqueiras, constituem uma espécie de síntese da Humanidade. É nelas que aparecemos, sem as desculpas ou evasivas que o rebuliço das cidades grandes desculpa ou justifica, para dar a parecer que os indivíduos são diferentes. Não são diferentes e a vida paradisíaca das cidades pequenas, que tantos imbecis exaltam, não passa de um exercício de falsa simplicidade, em que a maldade e a má vontade inerentes à condição humana se disfarçam até mesmo em solidariedade. Não é solidariedade o que se manifesta quando, por exemplo, se acodem os necessitados, é vaidade, vaidade exercida até mesmo perante o Deus que inventaram e ao qual dizem que são fiéis, pois que, apesar de professarem a onisciência desse Deus, acreditam que ele só vê o que eles querem” (pág 239)

“Só faltava Maria Helena – e como eu ia viver depois, que sentido teria a existência? Viver para quê? Para ler uns poucos livros, ouvir umas poucas músicas, dedicar-me ao sacerdócio, viajar? A última dessas opções nunca me seduziu e tampouco consigo entender a mania que muita gente tem por viagens. Por mim, não preciso conhecer nada, não quero lugar algum, tudo já está nos livros e a realidade é sempre inferior à imaginação, como já constatei em todas as ocasiões em que estive em lugares que me pareciam atraentes. Melhor vê-los através do pensamento, através de tudo o que já se escreveu, fotografou ou pintou sobre eles” (págs 285/286).

Um comentário:

  1. Já encontrei comentário, onde a primeira parte do livro foi dita como duplamente melhor que a primeira. Engraçado! Serve para reforçar a ideia sobre os diferentes pontos de vista. Mas o que preciso afinal é desta obra resumida, sabes onde encontro?

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