domingo, 25 de março de 2012

Stieg Larsson - Os Homens que não Amavam as Mulheres


“Acontecia todos os anos, quase como um ritual. O homem que recebia a flor festejava naquele dia seus oitenta e dois anos. Ele abriu o envelope e retirou o papel de presente do embrulho. Depois pegou o telefone e digitou o número de um ex-inspetor de polícia que desde sua aposentadoria instalara-se na Dalecarlia, perto do lago Siljan”.

Assim começa a intrigante história de “Os Homens que não Amavam as Mulheres” (cujo título original é “Os Homens que Odiavam as Mulheres”), que narra um enigma que se arrasta há décadas.

O homem mencionado é Henrik Vanger, octogenário que há anos convive com um mistério: em 1966, sua sobrinha, Harriet Vanger, então com 16 anos, desapareceu sem deixar vestígios. A investigação da polícia durou vários anos, sem sucesso. Após o fim do inquérito policial, Henrik passou a investigar por conta própria, incansavelmente. Sem sucesso, até os dias de hoje. Com um detalhe tétrico: Harriet, antes de desaparecer, enviava a Henrik, em todo aniversário seu (de Henrik), uma flor. Mesmo após desaparecer, as flores continuam chegando, ano após ano. 

Somos então apresentados a Mikael Blomkvist, um jornalista que não vive seus melhores dias. Acaba de ser condenado num processo judicial por difamação, e será obrigado a pagar uma vultosa indenização à vítima, além de cumprir uma pena de 3 meses de prisão. Ao que tudo indica, sua carreira está encerrada.

Henrik Vanger, raposa do mundo dos negócios, sabendo da situação de Mikael, faz-lhe uma proposta inusitada: pagará ao jornalista gordos honorários para que este volte a investigar o desaparecimento de Harriet. 

Mikael, sem muitas opções, se muda para a cidade onde tudo aconteceu em 1966, e passa a revolver todo o passado da família Vanger.

O mistério é muito interessante. Parece insolúvel, com a agravante de que não se dispõem de muitos meios para se investigar o que ocorreu há 40 anos. Não há sequer certeza se houve mesmo um homicídio.

Mas, para mim, o grande mérito de Stieg Larsson nem é criar uma história que tem tudo para ser fantástica (acaba não sendo).  É a construção de seus personagens. Os dois protagonistas, Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander, são cativantes. Ele é um jornalista bem sucedido (mesmo com a condenação judicial), dono da revista Millenium, simpático, inteligente, charmoso, faz sucesso com as mulheres (é uma das coisas de que não gostei no filme sueco, o Mikael lá é um sujeito sem sal).

Já Lisbeth é o oposto de Mikael. É introvertida, taciturna, tida como doente mental pela maioria, por vezes agressiva. “Uma jovem pálida, de uma magreza anoréxica, com cabelos quase raspados e piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha uma tatuagem de uma vespa no pescoço e uma faixa tatuada ao redor do bíceps do braço esquerdo”. Tem também uma tatuagem de dragão que ocupa suas costas inteiras (nos EUA a obra foi traduzida como “A Garota da Tatuagem de Dragão”, o que revoltou, com toda a razão, a viúva de Larsson). Mas não se enganem: Lisbeth é a melhor detetive da empresa em que trabalha. Mais para frente descobriremos que é a melhor hacker da Suécia.

É inevitável a pergunta: como alguém, com essa descrição, pode ser cativante? A personalidade forte, meus caros. Lisbeth Salander não leva desaforo para casa. Ela teria tudo para ser uma mulher frágil: é interditada pela Justiça (de modo que não pode gerir, sozinha, seu patrimônio), não tem família nem amigos, abandonou a escola e o porte físico é o de uma menina: um metro e meio e 40kg. Mas não é, muito pelo contrário. É forte, decidida, inteligente, sarcástica e, mais importante, não se cala diante das violências machistas a que as mulheres são sistematicamente submetidas. Pretendo falar um pouco mais sobre este ponto em outro post.

Aqui me lembro de uma antiga discussão literária: muitos sustentam que romances policiais seriam um gênero menor, por terem histórias que só se preocupariam em descobrir quem é o assassino. Não penso assim. Concordo com Luis Henrique Pellanda: literatura, ainda que sofisticada, é diversão. Creio que não se pode falar em GÊNEROS maiores e menores. Há LIVROS maiores e menores. Mas isso é assunto pra outro post.

A trilogia Millenium é uma obra feminista, o que já derruba o argumento de que seria apenas mais uma história que se preocupa em solucionar um mistério. O título de seu vol. 1 não é por acaso: quem ler/assistir entenderá por que se chama Os Homens que não Amavam as Mulheres (o título no Brasil ameniza a idéia do autor, pois ‘não amar’ é diferente de ‘odiar’, e a história a todo momento fala da misoginia).

Os capítulos do livro são abertos com dados estatísticos: cap 1-Na Suécia, 18% das mulheres foram ameaçadas por um homem pelo menos uma vez na vida; 2-Na Suécia, 46% das mulheres sofreram violência de um homem; 3-Na Suécia, 13% das mulheres foram vítimas de violências sexuais cometidas fora de uma relação sexual; 4-Na Suécia, 92% das mulheres que sofreram violências sexuais após agressão não apresentaram queixa à polícia. E isso que estamos falando da Suécia, país desenvolvido (logo, com menores índices de violência, de qualquer tipo) e, mais importante, dos que tem maior igualdade de gênero no mundo.

Mikael Blomkvist me parece claramente um alter ego de Stieg Larsson (que escreveu um livro sobre a extrema direita sueca). Entre outras, o personagem é feminista e de esquerda. Destaco duas de suas falas:

“-Eu nunca soube de capitalistas propensos à caridade”. (pág. 29).

“- Veja, não podemos misturar essas duas coisas: a economia sueca e o mercado da Bolsa sueca. A economia sueca é a soma de todas as mercadorias e de todos os serviços produzidos neste país diariamente. São os telefones da Ericsson, os veículos da Volvo, os frangos da Scan e os transportes marítimos de Kiruna a Skovde. Essa é a economia sueca, e hoje ela continua tão forte ou tão fraca quanto uma semana atrás.

Fez uma pausa retórica e bebeu um gole d´água.

- A Bolsa é algo bem diferente. Nela não há economia, nenhuma produção de mercadorias ou de serviços. Há somente fantasias nas quais, de uma hora para outra, decide-se que essa ou aquela empresa vale alguns milhões a mais ou a menos. Isso não tem nada a ver com a realidade nem com a economia sueca.

- Quer dizer então que não tem a menor importância que a Bolsa esteja em plena queda livre?

- Isso mesmo, não tem a menor importância. Significa apenas que os grandes especuladores estão transferindo suas aplicações financeiras em empresas suecas para empresas alemãs. Se comportam como as hienas das finanças que um repórter um pouco mais corajoso deveria saber identificar e levar ao pelourinho como traidores da pátria. São eles que, de forma sistemática e deliberada, minam a economia sueca para satisfazer os interesses de seus clientes”. (págs 509/510)

Outra parte digna de nota da história diz respeito aos bastidores da revista Millenium. Mostra como é o cotidiano de um veículo da imprensa, como o negócio é gerido e, o mais importante, levanta discussões muito interessantes sobre o papel da imprensa na sociedade (o trecho que acabei de destacar fala da falta de coragem dos jornalistas econômicos). Quem fez/faz Jornalismo terá aqui um prato cheio.

Todavia, nem tudo são flores.

Stieg Larsson não escreve bem – ainda mais se comparado à J.K. Rowling (até uns tempos atrás eu andava lendo Harry Potter, fiquei mal acostumado), que escreve muitíssimo bem. É difícil conceituar o que seria escrever bem, mas você sabe quando está diante de um texto que não é uma Brastemp. É emblemática, por exemplo, a passagem em que Mikael Blowkvist está sendo torturado. Teria tudo para dar arrepios, medo, tensão, desespero (rs), mas não dá. A meu ver, porque mal narrada.

E o ritmo deixa a desejar. O livro é muito parado. Não que isso, por si só, seja um defeito. O Mundo de Sofia, por exemplo, é um livro parado, mas excelente, entre outras, porque reflexivo. Existem algumas cenas de ação, mas são exceções. A história, na maior parte, é uma pasmaceira só. 

É o que faz Os Homens que não Amavam as Mulheres ser o pior da trilogia. E, mesmo assim, bom. Leitura recomendada.

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