domingo, 9 de outubro de 2011

"A questão da criminalidade não se resolve com o Direito Penal".

Transcrevo aqui um pequeno trecho de uma entrevista que o advogado Juarez Cirino dos Santos deu à Gazeta do Povo. Selecionei a parte que considero mais importante e que não trata tanto de questões de Direito, para que quem não possui formação jurídica possa entender.

Acho sensacional a parte em que Juarez fala de como nós, que não somos detentores do capital, contribuímos para a manutenção dessa sociedade injusta. É por isso que são nojentas as ideias (típicas da direita) de que criminoso é vagabundo, que não correu atrás, e que, portanto, merece castigos como levar chicotadas (em recente declaração de deputado do PP, aquele belo partido que abriga em seus quadros pessoas doces como Jair Bolsonaro), prisão perpétua ou pena de morte.

E concordo também quando Juarez diz que é bobagem dizer que as pessoas nascem boas ou más. Não existe essa história de carma, destino ou qualquer outro nome que queiram dar. A mim soa deveras conformista certas explicações que costumam dar em certos casos. Por exemplo: a criança nasceu numa família miserável, aos 05 anos viu os pais serem assassinados, então passou a morar nas ruas, onde a luta pela sobrevivência era diária e onde aprendeu toda sorte de coisas ruins. Aos 12 ela vai para um reformatório, onde aumenta seu ódio diante de tanto terror, aos 16 já é chefe de algum grupo criminoso e aos 20 morre num tiroteio com a polícia. A explicação? Era o destino dela. E eu achando que a culpa era do Estado, que não deu as mínimas condições para que ela se desenvolvesse. Nas palavras de Juarez: "E aí, dentro de algum tempo, nós vamos encontrar aqui uma criança que nasceu com um potencial de desenvolvimento extraordinário transformada num animal, num sujeito inteiramente deformado, com o qual realmente é impossível conviver".

Mas já falei demais. Fiquem com as ótimas palavras do autor.  

O Sr. fala de carreiras criminosas. Há indivíduos irrecuperáveis? O que fazer com eles?

Nós estamos tratando aqui da natureza humana. Estamos partindo do princípio de que existem pessoas que são boas, e que nascem boas, e que continuam boas, e nada as perverte. E existiriam pessoas que são más, nascem más, e nada as transforma em pessoas boas. Existem pessoas boas e más, e as más nós temos que excluir e as boas nós temos que privilegiar. Essa é uma idéia errada também. As pessoas não são boas ou más, as pessoas são feitas boas ou más. O homem não nasce com uma natureza dada. Não há os eleitos e os condenados, os que estão na felicidade e os que estão na miséria. O ser humano, na verdade, é o conjunto das relações sociais.

Quando eu penso o ser humano como conjunto das relações sociais, eu estou inserindo o homem no contexto concreto da sua vida, e percebendo o nosso ser humano em uma sociedade como a nossa, que é uma sociedade desigual, que essa desigualdade é instituída constitucionalmente e reproduzida pelo Direito. Isso é importante destacar. A desigualdade não é um fenômeno natural. A desigualdade é instituída pela Constituição e reproduzida pelo conjunto do Direito, no caso do Direito Civil, do Direito do Trabalho, etc., e o que é pior: garantida pelo Direito Penal, pelo sistema da justiça criminal. Que desigualdade é essa? A desigualdade que decorre da relação capital X trabalho assalariado. Uma relação desigual cuja lógica significa concentração da riqueza e do poder num dos pólos da relação, que é o pólo do capital, e a generalização da miséria e da privação no outro pólo.

Agora, nós vemos aqui nesse pólo do trabalho dezenas de milhões de pessoas que vivem com dificuldades fantásticas, vivendo com um salário, um pouco mais de um salário – e é impossível viver com R$ 400 por mês num país como o nosso –, e uma riqueza imensa do outro lado, que não é socializada. Agora, ainda assim, felizes dos que estão no processo de trabalho, que ainda estão integrados no mercado de trabalho e que têm um salário, uma moradia, apesar de viverem com uma dificuldade imensa. E os milhões que estão excluídos do processo de trabalho e não conseguem retornar, vão viver como? Eles não têm onde morar, não têm o que comer, não têm escola, não têm roupa, não têm perspectiva, não têm esperança, não têm família, não têm nem pai nem mãe. E esse pessoal? Imagine o ser humano que se forma. Então agora eu estou compreendendo o ser humano como a expressão desse conjunto de relações históricas, de razões sociais que o constitui.

E aí, dentro de algum tempo, nós vamos encontrar aqui uma criança que nasceu com um potencial de desenvolvimento extraordinário transformada num animal, num sujeito inteiramente deformado, com o qual realmente é impossível conviver. Mas é culpa dele? Ele não gostaria de ter tido outra chance? Foucault tem uma passagem notável no livro Vigiar e Punir: ele coloca um juiz na frente de um réu e aí ele fica especulando e estudando as condições do réu, dizendo que se esse réu tivesse nascido nas condições daquele juiz, tivesse tido as chances que ele teve de se alimentar bem, de desenvolver o cérebro, de se escolarizar, de ter o apoio da família, ele seria um juiz e talvez estivesse julgando um réu. E se aquele juiz tivesse vivido nas condições desse réu, de marginalização, de exclusão, muito provavelmente ele estaria no lugar do réu, sendo julgado. Por quê? Porque o homem é esse conjunto das relações sociais, das relações históricas.

Aí nós vamos ver que nós estamos produzindo essas pessoas, então nós somos responsáveis por elas também. Não as produzimos diretamente, porque não somos capitalistas, porque não temos uma grande empresa, porque não somo banqueiros, não somos industriais, não somos fazendeiros, mas somos responsáveis. Porque nós, nas escolas, nas faculdades, defendemos uma concepção de mundo que sustenta essa organização social. Na imprensa, defendemos um conjunto de valores que sustenta essa organização social. No parlamento, estabelecemos leis que instituem essa organização social. Ou seja, nós somos responsáveis por isso também. Como é que agora eu posso falar num sujeito irrecuperável, que eu preciso eliminar as maçãs podres, se fui eu quem as apodreceu. Essa maçã, em condições adequadas, poderia ser uma fruta muito bonita. Em uma sociedade desigual, violenta, como a nossa, não é possível você conter a violência individual com polícia. Isso se faz com políticas sociais, que não se realizam porque isso requer uma transformação, uma mudança na correlação de forças, que está na base da organização social e das relações de poder político que estão aí presentes e que se exprimem nessa legislação que institui a desigualdade, ou que garante a desigualdade. O Direito Penal entra aqui como uma garantia, porque o Direito Penal legitima a prisão, e é porque o Estado tem o poder de prender através do processo penal que se mantém essa organização social absolutamente injusta. Se não existisse o poder de prender, o que seria dessa forma de organização da sociedade?

Entrevista na íntegra disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=753531

Nenhum comentário:

Postar um comentário