Idem ao post anterior: vi hoje o Meia-Noite em Paris, e achei formidável. Como estou com preguiça de escrever sobre, publico aqui a crítica do saudoso Daniel Piza, que faleceu no fim do ano passado, deixando-me, de certa forma, órfão.
NUNCA SE ESTÁ SOZINHO EM PARIS
O filme se abre com um solo de Sidney Bechet (Bechê, na pronúncia
francesa) enquanto imagens de Paris se sucedem, diurnas e noturnas, mas
Woody Allen não vai falar apenas da beleza turística da cidade luz, de
seus tantos cartões-postais, ainda que sigam inexauríveis. O
protagonista de Meia-Noite em Paris, Gil Pender (Owen Wilson), quer
muito mais da cidade que sua noiva e seus sogros, americanos como ele,
que dizem que ela serve "para visitar, não para morar", e só fazem
programas banais e compras, muitas compras. Gil está cansado de escrever
ou reescrever roteiros medíocres em Hollywood para ganhar dinheiro e
gastá-lo em móveis de US$ 20 mil para sua casa em Malibu. Quer escrever
um romance, e dos bons. Mas não tem apoio autêntico de ninguém.
Um amigo que encontram lá, um tipo "pedante Google" que acha que
conhecimento é acumular informações sem qualquer relação com as
experiências, diz logo no começo que essa mania de falar em "eras de
ouro", de idealizar épocas como se tivessem sido perfeitamente felizes, é
coisa de quem não consegue lidar com o presente. Bem, o presente de Gil
não é dos mais inspiradores e, numa noite, sozinho e bêbado, um carro
antigo passa e o leva para um festa. Ali vê Cole Porter tocando e
cantando Let"s Do It ao piano e conhece o casal Scott e Zelda
Fitzgerald; pouco depois, é apresentado a Hemingway; ainda encontra
Gertrude Stein, Dalí, Djuna Barnes, Archibald McLeish, Buñuel, Matisse,
Modigliani e Picasso. Idealizando ou não, quem não queria estar nesse
tempo e lugar?
Nós, espectadores, rimos com o "name-dropping" de Woody e partilhamos
a perplexidade de Gil, mas não é esse o único barato do filme. Gil
encontra também Adriana (Marion Cottilard, presença muito mais especial
que a de Carla Bruni), uma encarnação de charme e sensualidade que sua
bela noiva jamais poderia igualar. Ela é amante de Picasso e depois
Modigliani, o que vale uma fala deliciosa de Gil: "Você dá outro
conceito à palavra groupie". Groupies, como se sabe, são aquelas fãs que
transam com os ídolos só porque estes sobem ao palco e tocam dois
acordes. Gil tem ainda a oportunidade de receber a opinião de Gertrude
Stein sobre seu romance e de conversar com Hemingway, "Papa" (quantas
pessoas na plateia sabem desse apelido?), sobre como o amor só vale a
pena quando o sexo suspende nosso medo da morte.
Woody faz como ninguém essa reconstituição dos personagens. Quem já
leu os textos do cineasta conhece seu dom para parodiar estilos como o
de Hemingway, o qual se vê nos diálogos do filme, repletos de "and"
("e"), assertivas (como ao profetizar para Scott sobre Zelda: "Essa
mulher vai te deixar louco e vai estragar seu talento") e expressões
como "grace under pressure" (graça sob pressão). Não gostei tanto do
Picasso mal articulado e rabugento, mas isso é detalhe. O que importa é
que esses "amigos imaginários" de Gil, como diz sua noiva em tom de
crítica, representam para ele uma experiência virtual que vai se
refletir na realidade - e não é para isso que a arte serve? Por um
momento, ele pensa se é possível gostar de duas pessoas, mas não demora
muito para ver que sua noiva materialista e egoísta não o ama nem merece
ser amada.
Da mesma maneira, Woody não quer saber apenas de fazer turismo por um
passado glamouroso para quem se interessa por artes e mulheres. Adriana
quer viver em outra era de ouro, na década de 1890, e conviver com
Lautrec e Degas, jantar no Maxime"s e ir ao Moulin Rouge. Todos já
pensamos nisso: em viver na Florença dos Médici, na Londres do exílio de
Voltaire, no Rio dos anos 50... Eu confesso que sempre pus no topo da
lista a mesma Paris dos anos 20. Mas quem acha que Woody está dizendo
que não existem eras de ouro comete tolice. Decididamente, os tipos de
conversa, música, dança, literatura, pintura e moda que vemos desfilar
no filme, para dizer o mínimo, formam um contraste forte com nossa época
frívola, dominada pela patrulha das aparências, tão sem espirituosidade
e refinamento. Um dos bares que Gil visita nos anos 20 é hoje uma
lavanderia, cheia de máquinas, vazia de coragens.
No final, em que Gil encontra no presente uma chance de perpetuar
esse ânimo do passado (encontra um sabor dos anos 20 numa pessoa e num
lugar), vemos como foram bobas em geral as resenhas sobre o filme. Woody
não fez apenas mais uma "diversão inteligente", como se fosse um bom
seriado de TV ou outro de seus filmes recentes. É divertido, claro, mas
está a serviço da inteligência, que não é adjetivo. Pode ser lido como
um filme sobre a Paris dos anos 20; sobre a relação americana com a
cultura europeia (e os americanos atuais se saem mal no filme: sempre se
queixando, até da comida); sobre a ousadia de realizar o sonho de ir a
fundo no trabalho e no amor; sobre uma cidade ou as cidades especiais,
que são mais ricas se têm mais "fantasmas" inspiradores. Sim, parece
dizer Woody Allen depois dessa série de filmes rodados na Europa, é
preciso lidar com o presente, mas "o passado nem sequer passou", na
citação que faz de Faulkner, e há muitas maneiras de lidar com o
presente. Au point.
Retirado de http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nunca-se-esta-sozinho-em-paris,737017,0.htm
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